segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Temporada de prêmios

Depois de Cannes, Veneza, Toronto e tantos outros festivais de cinema, começou nos Estados Unidos a temporada de premiações dos melhores filmes do ano... de lá, é claro. SAG, WGA, DGA, AFI, Globo de Ouro, Oscar..Sindicatos, organizações, revistas, sites, programas de TV, todos começam a revelar seus indicados ou vencedores a melhores filmes do ano, dividindo-os em categorias ou elegendo obras únicas.


Sem qualquer intenção de criticar as escolhas dos filmes ou sua qualidade – até porque a grande maioria nem estreou por aqui, guardadas pelas produtoras exatamente para essa época do ano – fica a ressalva de que estas são premiações do cinema (e televisão) AMERICANO e não “mundial” como gostam de dizer por aí. O mundial fica apenas no fato da produção de cinema ianque ser hegemônica ao redor do mundo, resistindo e sufocando a produção local de outros países. Mas não vamos falar disso agora, pois seria necessário falar de outros pontos importantes como sistemas de produção, investimento e lucros, indústria e produção independentes, perfil de público...



O objetivo é dizer que, se sua intenção for torcer o nariz para essas premiações, fique a vontade quanto a isso, mas que não seja também para suas produções. Nem tudo o que se faz na “nave-mãe” é descartável e há sempre boas surpresas no meio, ainda que freqüentemente se encontrem produções que agradem apenas àqueles velhinhos ranzinzas sentados em cadeiras cheias de teia de aranha da academia e da velha guarda dos sindicatos.



Como em QUALQUER parte do mundo, há na terra de Obama produções ruins ou boas, independente da quantidade de produção ou dos meios escusos, pérfidos e sujos que permeiam essa produção. Não devemos em momento algum deixar de discutir e apontar os problemas da produção cinematográfica mundial, principalmente o famigerado cinema norte-americano, mas não nos permitamos que a cegueira de um eventual radicalismo anule a oportunidade de assistir a um bom filme, que faça jus a tudo o que o cinema construiu de bom ao longo dos anos. Sim, existem boas obras no cinema do Tio Sam e, se não for para encontrá-las por meio de suas premiações, que seja por outros meios destituídos de qualquer preconceito que possa evitar a apreciação de uma obra relevante.



Segue abaixo a lista de indicados ao Globo de Ouro 2009 e a esperança de que todos continuem a freqüentar os cinemas, seja para falar bem ou mal, seja para assistir produções americanas, brasileiras, inglesas, italianas, francesas, chilenas, iranianas, coreanas, suecas, dinamarquesas, jamaicanas, tibetanas...




cinema
MELHOR FILME [DRAMA]
O Curioso Caso de Benjamin Button
Frost/Nixon
The Reader
Foi Apenas um Sonho
Slumdog Millionaire


MELHOR FILME [MUSICAL ou COMÉDIA]
Queime Depois de Ler
Simplesmente Feliz
Na Mira do Chefe
Mamma Mia!
Vicky Cristina Barcelona


MELHOR ATRIZ [DRAMA]
Anne Hathaway (O Casamento de Rachel)
Angelina Jolie (A Troca)
Meryl Streep (Doubt)
Kristin Scott Thomas (I’ve loved you so long)
Kate Winslet (Foi Apenas um Sonho)


MELHOR ATRIZ [MUSICAL ou COMÉDIA]
Rebecca Hall (Vicky Cristina Barcelona)
Sally Hawkins (Simplesmente Feliz)
Frances McDormand (Queime Depois de Ler)
Meryl Streep (Mamma Mia!)
Emma Thompson (Last Chance Harvey)


MELHOR ATOR [DRAMA]
Leonardo DiCaprio (Foi Apenas um Sonho)
Frank Langella (Frost/Nixon)
Sean Penn (Milk)
Brad Pitt (O Curioso Caso de Benjamin Button)
Mickey Rourke (The Wrestler)


MELHOR ATOR [MUSICAL ou COMÉDIA]
Javier Bardem (Vicky Cristina Barcelona)
Colin Farrell (Na Mira do Chefe)
James Franco (Segurando as Pontas)
Brendan Leeson (Na Mira do Chefe)
Dustin Hoffman (Last Chance Harvey)


MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO
Bolt - Supercão
Kung Fu Panda
Wall-E


MELHOR FILME DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
The Baader Meinhof Complex (Alemanha)
Everlasting Moments (Suécia/Dinamarca)
Gomorra (Itália)
I’ve loved you so long (França)
Waltz With Bashir (Israel)


MELHOR ATRIZ COADJUVANTE
Amy Adams (Doubt)
Penelope Cruz (Vicky Cristina Barcelona)
Viola Davis (Doubt)
Marisa Tomei (The Wrestler)
Kate Winslet (The Reader)


MELHOR ATOR COADJUVANTE
Tom Cruise (Trovão Tropical)
Robert Downey Jr. (Trovão Tropical)
Ralph Fiennes (A Duquesa)
Philip Seymour Hoffman (Doubt)
Heath Ledger (Batman - O Cavaleiro das Trevas)


MELHOR DIRETOR
Danny Boyle (Slumdog Millionaire)
Stephen Daldry (The Reader)
David Fincher (O Curioso Caso de Benjamin Button)
Ron Howard (Frost/Nixon)
Sam Mendes (Foi Apenas um Sonho)


MELHOR ROTEIRO
Simon Beaufoy (Slumdog Millionaire)
David Hare (The Reader)
Peter Morgan (Frost/Nixon)
Eric Roth (O Curioso Caso de Benjamin Button)
John Patrick Shanley (Doubt)


MELHOR TRILHA SONORA ORIGINAL
Alexandre Desplat (O Curioso Caso de Benjamin Button)
Clint Eastwood (A Troca)
James Newton Howard (Defiance)
A. R. Rahman (Slumdog Millionaire)
Hans Zimmer (Frost/Nixon)


MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
Down to Earth (Wall-E)
Gran Torino (Gran Torino)
I Thought I Lost You (Bolt - Supercão)
Once In A Lifetime (Cadillac Records)
The Wrestler” (The Wrestler)


televisão
MELHOR SÉRIE [DRAMA]
Dexter
House
In Treatment
Mad Men
True Blood


MELHOR SÉRIE [MUSICAL ou COMÉDIA]
30 Rock
Californication
Entourage
The Office
Weeds


MELHOR ATRIZ [DRAMA]
Sally Field (Brothers and Sisters)
Mariska Hargitay (Law and Order: SVU)
January Jones (Mad Men)
Anna Paquin (True Blood)
Kyra Sedgwick (The Closer)


MELHOR ATRIZ [MUSICAL ou COMÉDIA]
Christina Applegate (Samatha Who?)
America Ferrea (Ugly Betty)
Tina Fey (30 Rock)
Debra Messing (The Starter Wife)
Mary-Louise Parker (Weeds)


MELHOR ATOR [DRAMA]
Gabriel Byrne (In Treatment)
Michael C. Hall (Dexter)
Jon Hamm (Mad Men)
Hugh Laurie (House)
Jonathan Rhys Meyers (The Tudors)


MELHOR ATOR [MUSICAL ou COMÉDIA]
Alec Baldwin (30 Rock)
Steve Carell (The Office)
Kevin Connolly (Entourage)
David Duchovny (Californication)
Tony Shaloub (Monk)


MELHOR MINISSÉRIE OU FILME
A Raisin in the Sun
Bernard and Doris
Cranford
John Adams
Recount


MELHOR ATRIZ DE MINISSÉRIE OU FILME
Judi Dench (Cranford)
Catherine Keener (An American Crime)
Laura Linney (John Adams)
Shirley Maclaine (Coco Chanel)
Susan Sarandon (Bernard and Doris)


MELHOR ATRIZ COADJUVANTE EM MINISSÉRIE OU FILME
Eileen Atkins (Cranford)
Laura Dern (Recount)
Melissa George (In Treatment)
Rachel Griffiths (Brothers and Sisters)
Dianne Wiest (In Treatment)


MELHOR ATOR EM MINISSÉRIE OU FILME
Ralph Fiennes (Bernard and Doris)
Paul Giamatti (John Adams)
Kevin Spacey (Recount)
Kiefer Sutherland (24: Redenção)
Tom Wilkinson (Recount)


MELHOR ATOR COADJUVANTE EM MINISSÉRIE OU FILME
Neil Patrick Harris (How I Met Your Mother)
Denis Leary (Recount)
Jeremy Piven (Entourage)
Blair Underwood (In Treatment)
Tom Wilkinson (John Adams)

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Dados da Retomada

cinema-nacional2




Alguns dados referentes ao cinema da Retomada no período de 1995 a 2007:

Número de longas lançados:


1995: 13 filmes


1996: 18 filmes


1997: 21 filmes


1998: 23 filmes


1999: 28 filmes


2000: 22 filmes


2001: 30 filmes


2002: 29 filmes


2003: 29 filmes


2004: 28 filmes


2005: 45 filmes


2006: 70 filmes


2007: 78 filmes



Público:


1995: 3.123.508


1996: 1.070.852


1997: 3.750.913


1998: 4.330.557


1999: 6.092.101


2000: 6.341.269


2001: 7.948.065


2002: 7.093.550


2003: 21.584.122


2004: 16.568.848


2005: 10.178.369


2006: 10.641.707


2007: 9.013.789


As 10 maiores bilheterias desde 95:


1º) Dois filhos de Francisco (2005): 5.319.677


2º) Carandiru (2003): 4.693.853


3º) Se Eu Fosse Você (2006): 3.644.956


4º) Cidade de Deus (2002): 3.307.746


5º) Lisbela e o Prisioneiro (2003): 3.169.860


6º) Cazuza – O Tempo Não Pára (2004): 3.082.522


7º) Olga (2004): 3.076.297


8º) Os Normais (2003): 2.977.641


9º) Xuxa e os Duendes (2001): 2.621.793


10º) Tropa de Elite (2006): 2.417.193


Os dados estão disponíveis no site da Ancine - http://www.ancine.gov.br/.


- Curioso perceber como o expressivo salto na quantidade de produções do ano de 2004 para o ano de 2005 seguiu paralelamente a um decréscimo de público.


- 2003, o ano pós-Cidade de Deus viu Carandiru se tornar a maior bilheteria de um filme nacional – e ficou nessa posição até 2005 - e teve o recorde de público da retomada.


- Há pouco mais de quatro anos eu assisti Cazuza – O tempo Não Pára no antigo Cine Ipiranga, um dos mais famosos cinemas do centro de São Paulo, situado na Avenida Ipiranga e que fica de frente a outro clássico, o Marabá. Infelizmente, essas salas estão fechadas desde então (o Marabá ainda exibiu alguns filmes até meados desse ano), sem previsão alguma de reabertura ou reformas. São os cinemas “multiplex” vencendo a batalha.


cinebrasil2002b

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A beleza de Miyazaki

miyazaki Miyazaki tem muito a dizer. Tem tanto a dizer que sua obra não se reflete apenas nas palavras de seus personagens ou na escrita de suas histórias, seja para a televisão, para o cinema ou para meios impressos. Para se ter uma pequena idéia de tudo o que ele tem a dizer, é necessário bastante atenção a todos os componentes de qualquer obra sua. A riqueza de detalhes de suas composições só não parece ser maior do que o esforço depositado ali para que tamanha grandeza repouse numa simplicidade gritante. Se a arquitetura moderna clamava aos quatro cantos que “menos é mais”, em Miyazaki o menos parece ser muito mais.


Fica uma forte impressão ao final de cada filme do animador e cineasta japonês de que estamos diante de alguém que não abre mão, de maneira alguma, da animação tradicional, apenas incorporando novos recursos tecnológicos como meras ferramentas de apoio para esse fim. Mais ainda, Miyazaki nunca deixa em segundo plano sua arte de pinturas, assim como não deixa de lado outras características presentes na maior parte de sua obra, como a preocupação com a natureza ou a aviação, sempre presente em algum nível (fruto das lembranças de sua infância onde o pai trabalhava em uma fábrica de lemes para aviões). O que poderia ser confundido com conservadorismo acaba se revelando como um dom único, de alguém que vive para a arte como forma de conscientização dos males que provocamos ao nosso planeta.


Outra bem sucedida iniciativa é a confiança na possibilidade de se criar algo original, mesmo que trabalhando com um folclore popular que poderia não fazer o menor sentido fora de terras asiáticas. Nunca duvidamos do mundo mágico ou dos personagens divertidos, estranhos, belos ou bizarros que protagonizam as histórias do criador japonês, porque ele, desde o início, os coloca em posições simbólicas, mas nunca fechadas em estereótipos. Mesmo os vilões, ainda que possam estar sugeridos superficialmente como tais através de seu aspecto, nunca podem ser taxados essencialmente como alguém mal. A inversão visual de papéis que Miyazaki constrói em seus filmes mexe com a passividade do espectador, acostumado a receber arquétipos de bandeja. A partir disso, um porco heróico nos remete à ícones do cinema hollywoodiano como Clark Gable, por sua postura e seus princípios de honra, mas que não deixa de ser fisicamente um porco. Ou Sophie, protagonista de O Castelo Animado, que devido a uma maldição passa boa parte da história como uma velha de aparência feia e frágil. Totoro, um “bichinho bonito e fofo”, faz sua magia através de berros assustadores e o que dizer da muitas vezes sombria casa de banhos onde Chihiro é obrigada a trabalhar para salvar os pais? Estas obram não duvidam em momento algum de nossa inteligência, pelo contrário, parecem querer estimulá-la visualmente a todo o instante. A superficialidade de um mundo visualmente esgotado pelo excesso é substituída aqui por um exercício apurado do olhar diante de outro mundo, um pouco mais belo, um pouco mais colorido, por vezes, um pouco mais sombrio, mas, geralmente, muito parecido com o nosso. Para se perceber isso é só prestar atenção nas velhas entrelinhas.


Se nas últimas décadas viu-se crescer certo interesse do ocidente pelo oriente, não há como negar que boa parte desse interesse partiu da cultura popular e sua intrínseca característica de absorver tudo ao seu redor, principalmente aquilo que, aparentemente, seja exótico. Não foi diferente com os filmes, com as pinturas, com os mangás e, finalmente, com os animes japoneses. E ainda que seja um sacrilégio reduzir um filme de Miyazaki a um simples anime (desenho animado japonês), é provável que ele não veja inconveniente algum nisso, pois dentro de sua obra também há um vasto espelho do que a de mais belo na cultura milenar japonesa e do que há na nossa própria cultura, a cultura ocidental de novos e velhos mundos. E se através dessa absorção, pudermos aprender algo mais, nem que seja uma mudança simples de olhar quanto às pequenas coisas da vida, parte dos objetivos de filmes como Porco-Rosso, Meu Vizinho Totoro, A Viagem de Chihiro, Princesa Monoke, Nausicaä, entre tantos outros, estará atingido.


E que as tantas aposentadorias anunciadas por Miyazaki ao longo dos anos, continuem a ser apenas estímulo para que ele retorne com mais obras-primas.


Arigatou gozaimasu, sensei.


hayaomiyazaki

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Crepúsculo dos Deuses

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Não é sempre que um título em português para uma produção estrangeira seja tão sonoro e tão oportuno como no caso de Sunset Blvd: Crepúsculo dos Deuses (1950) é considerado por muitos a obra-prima de Billy Wilder, uma obra de absoluta relevância na história do cinema, cujos ecos soam nítidos e firmes até os nossos dias.

O roteirista fracassado Joe Gillis (William Holden), fugindo de seus cobradores, acaba numa imensa mansão que pensa estar abandonada, até descobrir que ali vivem a ex-estrela do cinema mudo Norma Desmond (Gloria Swanson) e seu fiel empregado Max von Mayerling (Erich Von Stroheim). Ao descobrir a ocupação de seu visitante, Norma decide contratá-lo para revisar o roteiro que vem escrevendo há anos e que será seu grande retorno (nada de "volta", como ela mesma afirma) ao estrelato. O filme será dirigido pelo lendário Cecil B. DeMille. Gillis, a fim de unir o útil ao agradável (mais útil por causa de suas dívidas do que agradável) acaba aceitando a proposta e dá-se início a uma bizarra relação entre Norma e Gillis, com o empregado Max para fechar a trinca.

É dentro dessa história que Wilder vai realizar um filme imenso, que tem como uma de suas maiores forças o fato de ser também uma imensa contradição. A história da ex-dama do cinema mudo que vive esquecida pela mídia e pelo grande público - ficção que se confunde com a vida real, uma vez que a própria Swanson já participara de mais de 50 filmes e na época de Crepúsculo... estava praticamente esquecida - é apenas um dos "cutucões" nas feridas que existem no grande corpo de Hollywood. As diferenças de tratamento, o papel dos agentes, a relação dos estúdios com o lucro, o Star-System, enfim a grande aura de "negócios" que envolve TODO o universo Hollywoodiano é tratado ou citado em algum nível no filme. E a competência na realização de Crepúsculo dos Deuses fez do próprio filme um sucesso inquestionável e um símbolo da era de ouro de Hollywood.

Felizmente, isso é plenamente justificável ao se assistir a película e ver desfilarem a frente atores de extrema competência, encaixados numa mis-en-scène perfeita. Gloria Swanson é um monstro no papel de Norma, crescendo na tela a cada aparição e dizendo frases pontuais e certeiras, como aquela que se tornou uma das mais famosas do cinema "Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos". Os contrastes do preto-e-branco acentuados nas cenas de Gillis e Norma apenas potencializam a relação de caça e caçador que eles partilham ao longo do filme. A auto-referência se expande quando vemos em cena outras figuras decisivas na história do cinema como Buster Keaton, Hedda Hopper e o próprio DeMille, vivendo a si mesmo na tela. Além disso, o inusitado roteiro nos remete a obras não necessariamente literárias: o protagonista que se revela já defunto (e o vemos morto) no início do filme remete imediatamente ao excêntrico Brás Cubas, da obra de Machado de Assis; e influenciou a forma de personagens de consagradas produções recentes a contarem suas histórias, como o Lester Burham (Kevin Spacey) de Beleza Americana (1999).

O filme acaba se revelando um sofisticado exercício de metalinguagem, onde aponta o dedo para o próprio rosto e se denuncia diante do espectador, mas não deixa também de fazer a ação inversa e apontar o dedo em nossa direção. O ápice de toda a construção de Crepúsculo dos Deuses culmina num final arrebatador, onde os excessos parecem emergir de maneira natural e o absurdo faz todo o sentido com o que fora construído até ali. Mesmo a previsibilidade do desfecho não deixa de ser um interessante componente numa obra que se propôs desde o início a criticar a tradição do cinema. A cena de Norma descendo a escadaria e crescendo em nossa direção parece simbolizar um cinema feito em indústria, que nos engole por inteiro e nos sufoca, ditando a direção da maior parte da produção cultural do último século e de parte do início desse novo século. Mas assim como Gillis, seja por necessidade, preguiça ou pura conveniência, aceitamos essa imposição e, não há problema algum nisso, desde que estejamos a par daquilo que ingerimos e que nos responsabilizemos por eventuais efeitos colaterais, caso contrário, o antiácido talvez não ajude muito. ;-)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Considerações de um Noitão HSBC




Da Cama Para a Fama (Torremolinos 73)


torremolinos73


Produção espanhola de 2003 que conta a história de um vendedor de enciclopédias e sua esposa que, passando por uma crise financeira, acabam aceitando a inusitada proposta de seu chefe de filmar suas relações sexuais para um “estudo científico” que está sendo feito na... Escandinávia (??!!). A produção é charmosa e cativante em sua primeira metade. A absurda situação acaba transformando a vida do casal, que começa a ascender socialmente com o dinheiro ganho e a recuperar o ânimo já perdido com a rotina de tantos anos de casamento. Alfredo (Javier Cámara), inspirado por Ingmar Begman, vai descobrindo e experimentando pouco a pouca as nuances da linguagem cinematográfica (sim, ele faz isso em sues filmes pornô-amador... ou melhor, estudos científicos), chegando até a escrever um roteiro inspirado em O Sétimo Selo. Carmem (Candela Peña) faz emergir sua sensualidade adormecida, ainda que das maneiras mais estabanadas possíveis. Mas é o desejo desta de ser mãe que acaba conduzindo o filme para uma segunda parte que deixa cair bastante o ritmo até então constante e divertido. Apesar de tratar de questões interessantes nessa parte, como as imposições do chefe de Alfredo quanto às decisões finais de seus filmes, a produção oscila entre comédia e drama de maneira desequilibrada, e algumas conclusões acabam parecendo um tanto absurdas e contrastantes com o que havia se construído até então – mesmo com uma história tão improvável como essa -, e isso fica explícito, por exemplo, na solução para o desejo de Carmem. Mas mesmo com um final um pouco preguiçoso, esse Torremolinos 73 vale por sua divertida e inteligente primeira metade, boa o suficiente para nos manter até o final do filme a espera de mais uma boa sacada, mesmo que ela não venha.


Vicky Cristina Barcelona



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As duas amigas Vicky (Rebeca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) chegam a Barcelona com objetivos diferentes, mas que já refletem suas personalidades. Vicky está na viagem fazendo pesquisas para sua tese. Ela é prática, objetiva, centrada. Cristina está lá porque acabou um relacionamento e precisa de novos ares, de novas aventuras. Ela é impulsiva, instável, pseudo-artista. As duas são “opostos” que se entendem. Em determinado momento elas conhecem Juan Antonio (Javier Bardem), pintor charmoso, modelo de artista exótico latino que vive uma estranha relação de amor e ódio com sua ex-mulher e gênio-indomável Maria Elena (Penélope Cruz, linda, e reafirmando a teoria de que é uma atriz muito mais competente falando sua língua materna). Ah! , Vicky está noiva de um advogado certinho, mas fica balançada pelo pintor Juan Antonio, que se envolve com Cristina, que se envolve com Maria Elena, que se envolve com Juan Antonio... É assim, nessa mistura de personagens arquetípicos e das cores da Espanha que Woody Allen tece mais uma vez suas questões existenciais a respeito do amor e do sentido da vida. Mas dessa vez ele parece não utilizar apenas um alterego, como acontece em filmes nos quais não atua, mas divide suas neuroses em várias facetas, trabalhando os clichês ambulantes que são as personagens do filme em favor de determinada linha de pensamento. Allen parece estar mais tranqüilo com o fato de que algumas coisas na vida que não necessariamente necessitam de alguma razão para ser ou acontecer. Tranqüilidade que só poderia mesmo ter vindo com a idade e com a experiência de alguém que viveu a vida fazendo filmes como parte de sua terapia. Vicky Cristina Barcelona é um filme leve, seguro, gostoso de assistir, menos ambicioso do que as últimas e irregulares produções londrinas do diretor. Fica apenas um “porém” quanto ao final do filme: como tem acontecido com freqüência em mais e mais produções, ele aparece em forma de uma inconclusão um tanto quanto preguiçosa. Não chega a frustração sem vergonha que é o final de O Sonho de Cassandra, até porque o diretor nunca fecha seus filmes de maneira definitiva, mas para quem já ousou se despedir do público na companhia do fantasma de Humphrey Bogart (em Sonhos de um Sedutor), fazer com que tudo volte ao normal soa mais com “tirei o meu da reta”.



Rebobine, Por favor

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A fim de atualizar seus conhecimentos a respeito do atual mercado de locação de filmes, o dono de uma locadora (Danny Glover) deixa seu ajudante (Mos Def) tomando conta do local por alguns dias, deixando como única recomendação que ele não permita que seu amigo (Jack Black) chegue perto do lugar. Pois o pior acontece e o personagem de Black desmagnetiza acidentalmente todas as fitas do local. Utilizando uma técnica conhecida como “suecada”, os dois amigos reencenam os filmes em versões de mais ou menos vinte minutos e com os recursos disponíveis e logo fazem da velha locadora um sucesso novamente. Essa é o plot principal do novo filme do diretor Michel Gondry. Diretor de rara inventividade técnica, a história permite que Gondry exiba toda a sua capacidade inventiva como uma homenagem aos diversos “filmes sessão da tarde” que formaram muitas crianças e jovens entre a década de 80 e 90 e, possivelmente, aos pioneiros do primeiro cinema - quando a linguagem cinematográfica era somente um esboço inconsciente - e aos desbravadores do vídeo dos anos 80, aos quais o próprio Gondry deve bastante. Mas assim como em seu filme anterior The Science of Sleep, o diretor esbanja técnica, mas economiza em roteiro e, se antes ele ainda podia se apoiar no carisma de Stephane (Gael Garcia Bernal), aqui nem mesmo os simpáticos moradores do bairro da locadora salvam a fita da mediocridade. Se Woody Allen utilizou os clichês da melhor maneira possível em seu novo filme, Gondry escolheu o que há de pior, com um resultado pífio e muito, mas muito aquém do seu ainda melhor filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Se tantos anos na direção de excelentes videoclipes foram capazes de alimentar toda a sua imaginação, resultando numa sempre segura e corajosa condução das imagens, não custava nada ao diretor um pouco mais de modéstia e exercício de observação e estudo de roteiros (e olha que os roteiros de Charlie Kaufman não são pouca coisa). Talvez, inconscientemente, Gondry tenha tentado fazer também seu filme sessão da tarde. Diversão despretensiosa, criativa, com potencial “cult”. Só se esqueceu que o público dessa época também mudou, e que a cultura da nostalgia já passou da fase de celebrar os anos 80. E, além de parar no tempo, ainda colocou um rótulo na embalagem de seu produto escrito “descartável”. ;-)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Cinema histórico em tempo real


Numa época de convergência de mídias em meios digitais, uma época pós-vanguardas, pós-moderna, digital, saturada de imagens e de extrema velocidade, como permanece o cinema como um dos alicerces da cultura da sociedade, e mais, como produzir imagens numa época onde já se viu de tudo e onde o espectador não mais pode ser um mero receptor de determinada informação? Qual é o audiovisual produzido no cinema do final do século XX e nesse início de século XXI?


A década de 90 chegou em meio a uma nova ordem, não só no que diz respeito a questões políticas, mas também a um novo cenário social e tecnológico. Após períodos conturbados, de disputas e conflitos, o homem do final do século finalmente gozava de certa liberdade de direção. Toda a tecnologia inventada, explorada e utilizada nas décadas anteriores agora caminhava por um percurso diferente, não tão centrado e de forma muito mais abrangente. Percurso este com uma nova característica que se mostrou essencial ao desenvolvimento dessa tecnologia: a convergência. Os meios de comunicação passaram a manter um contato mais freqüente entre si, trocando experiências e percebendo que muitas vezes o desenvolvimento de suas linguagens – e cada meio possui a sua linguagem específica – ocorria de forma paralela. E o cinema foi dentre esses meios o que mais transitou por outras formas de linguagens e, conseqüentemente, absorveu e as converteu para o seu próprio fim. E por mais estranha que possa parecer essa característica de absorção – isso se pensarmos na linguagem cinematográfica como uma das mais enraizadas dentro das linguagens de mídia comunicacional -, é ela também quem reafirma o poder do cinema em transformar o seu redor em matéria-prima essencial para seu desenvolvimento.


Ao longo do século XX, a importância e a utilização da imagem atingiram proporções nunca antes experimentadas. A imagem, que já ganhara um novo sentido e abrira novos horizontes com a fotografia, ganhava o mundo através do cinema, sendo utilizada tanto em fins meramente comerciais, como para propagar ideologias (vide filmes como O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, O Encouraçado Potemkin, de Eisnstein ou Intolerância, de D. W. Griffith) e mesmo ditar a moda e os costumes de seu tempo. A televisão consolidou o fascínio do público pelo material audiovisual e, se num primeiro momento, procurava simular no lar a experiência do cinema, não tardou a encontrar seu espaço próprio, a ponto de fazer a produção cinematográfica repensar seu papel na indústria de entretenimento e seus fins. Se o cinema trouxe a projeção como uma das partes principais de seu aparato técnico, foi a transmissão na maquinaria televisual (a televisão e posteriormente o vídeo) que trouxeram novos aspectos a imagem, agora ao alcance de todos e em tempo real (Phillipe Dubois).


E é neste último ponto (o tempo real), que se estruturou o desenvolvimento dos meios e da cultura contemporânea. Pensar em tempo real nos remete à velocidade com a qual é transmitida determinada informação de sua fonte emissora até o seu receptor. Quando, num primeiro momento, a barreira da velocidade foi aparentemente quebrada pela emissão em cadeia global pela televisão e, posteriormente, pela conectividade da internet, a percepção do usuário começou a sofrer alterações. O advento de novos meios de comunicação assim como um freqüente uso da imagem (diretamente ligado a lógica capitalista e conseqüentemente, ao consumo de produtos e afins), provocaram no espectador uma vontade cada vez mais crescente de ingerir novas sensações. Paralelo a isso, o cinema foi sofrendo dentro de seu universo algumas divisões que iam desde interesses pessoais a curiosidade de se experimentar novas técnicas de linguagem.


A favor da já citada propagação da imagem por todos os cantos, um tipo de cinema se estabeleceu como modelo tanto para fins comerciais quanto forma de expressar a vontade das massas: o cinema de Hollywood. Cinema construído a base de estrelas (sejam atores, diretores, produtores, roteiristas, etc.), de grandes orçamentos, de grandes estúdios, de grandes bilheterias, de premiações, o cinema de Hollywood perpetuou o modo de vida norte-americano e veio de encontro à nova realidade do mundo pós-guerra, com seu país saindo como grande vencedor e modelo de prosperidade. E ainda que houvesse uma grande produção independente, voltada a fins mais próximos a verdadeira realidade do povo ou de maior alcance artístico (e havia mesmo algumas produções de grande porte também com esses fins), a grande indústria do cinema aos poucos popularizou um formato de fazer cinema que, em detrimento a qualidade (roteiro), abusava de elementos como a estética e a popularização de suas estrelas. Ao mesmo tempo em que o cinema de Hollywood construía suas bases (que vinha desde o cinema mudo, passando pela guerra e pelo pós-guerra, chegando aos chamados blockbusters na década de 70), em outras partes do mundo, mais especificamente na Europa, o cinema era experimentado de outras formas. Além da já oposição cultural do velho continente em relação à América, outro olhar predominava e se refletia diretamente na produção audiovisual. Na Rússia, Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, foram pioneiros em repensar a construção da imagem em suas formas de montagem (e Einsestein levou a gramática cinematográfica proposta por Griffith a um novo patamar, com sua montagem intelectual). Os alemães não fizeram diferente com seu expressionismo, revelando as angústias do povo na construção de uma estética extremamente particular e que viria a influenciar em algum grau todas as gerações posteriores, sem se restringir apenas a Alemanha. Mas é no período pós-guerra e em suas décadas posteriores que essa produção cinematográfica atingiu graus nunca antes alcançados. Partindo, antes de qualquer coisa, de um retorno ao interior do homem, livre de qualquer intromissão externa provocada pela nova ordem social, política e econômica e pela lógica consumista e generalizante que ganhava cada vez mais força por todo o mundo (e essa busca por uma espécie de “pureza” foi presença constante no pensamento das vanguardas artísticas européias desde o início), novos “cinemas” foram emergindo por todos os lados, a começar pelo neo-realismo italiano. A saída do cineasta dos grandes estúdios, indo buscar seu material diretamente nas ruas das cidades devastadas (e aqui encontramos uma referência aos filmes de Vertov, ou mesmo podemos voltar ainda mais no tempo, até os filmes dos irmãos Lumière) trouxe uma nova dimensão à construção da imagem. Além disso, os teóricos e críticos de cinema resolveram fazer eles próprios seus filmes a fim de trabalhar a linguagem que por tanto tempo apenas “assistiram”. Desse tipo de movimento – influenciado pelo neo-realismo e por alguns filmes da era clássica de Hollywoood – nasceu a Novelle Vague francesa. Alan Resnais, Claude Chabrol, Eric Rohmer, François Truffaut, Jean-Luc Godard (especialmente Godard), entre outros, criaram uma nova forma de se fazer cinema. Um cinema a baixo custo, sem estrelas, autoral, de imagens com sentido e motivo de estar ali, com um trabalho sonoro específico e trabalhado (ou mesmo sem qualquer som), cinema de crítica e muitas vezes de homenagem ao próprio cinema. E sendo inspiração para outros cinemas, como o Cinema Novo, no Brasil. As conseqüências desse movimento podem ser encontradas já na década de 70, quando Jean-Luc Godard deu inicio a diversos experimentos com a imagem enquanto fazia parte do grupo Dziga Vertov (e posteriormente também).


Nesse momento, a sociedade passava por um conturbado período. A Guerra Fria e a corrida armamentista desenvolviam cada vez mais a tecnologia, que era repassada para os setores de consumo e transformada em eletrodomésticos. Desse momento advém o computador,construindo bases que permanecem até seu formato atual. As ditaduras espalhadas pelo mundo e alguns conflitos sem motivos reais ou específicos (como a guerra do Vietnã) geraram um novo censo crítico na população que, ainda que continuasse a consumir os produtos e absorver um sem fim de imagens publicitárias, começa a questionar sua postura de completa passividade. Pensando no que ocorreu com o cinema dos Estados Unidos, grande catalisador da cultura consumista, é nessa época que surgem cineastas que, assim como os franceses na Novelle Vague ou italianos neo-realistas, vão buscar um cinema mais autoral, um cinema de rua, de pessoas comuns, de marginalizados, de crítica. Surge Martin Scorcese, Francis Ford Copolla, Brian de Palma, John Cassavetes e Stanley Kubrick (que já ganharam seu espaço desde a década de 60) que, ainda que viessem a fazer parte dessa mesma indústria – e não é essa a grande iniciativa do sistema, absorver tudo o que o envolve? – criaram obras que eram verdadeiros estudos da sociedade americana. E o mesmo pode ser observado em outros locais do mundo. A Alemanha viu renascer seu cinema com cineastas como Win Wenders, Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog. Na Itália, já desde os anos cinqüenta e sessenta, Frederico Fellini e Michelangelo Antonioni eram os dois grandes exemplos do cinema pós-neo-realismo. Ingmar Bergman e seu cinema existencialista vinham da Suécia. Isso sem contar toda a história da cultura audiovisual do oriente, de nomes como Ozu e Kurosawa.


Mas a partir de meados da década de oitenta, a imagem audiovisual se transforma mais uma vez. É com o vídeo e seu fácil acesso aos seus realizadores, além de, num primeiro momento, ser a ponte entre cinema e televisão, podendo ser parte de ambos, que um novo tipo de experimentação começa a se dar no campo do audiovisual. Artistas, cineastas, videomakers, reformulam o papel do audiovisual eliminando a necessidade de um único meio específico de projeção e transmissão (vide as instalações), além de um novo mergulho à construção do conjunto de imagens e sons que não mais seguissem uma ordem linear, podendo ou não fazer algum sentido ao espectador - e nesse processo nasce a linguagem do videoclipe, preparando-nos definitivamente para a era digital e toda a velocidade dos meios de comunicação.


O cinema chega aos anos 2000 com uma infinidade de referências, tecnológicas e culturais que foram surgindo ao longo de quase um século. Não é de se espantar que esse cinema esteja agora diante de um novo público, acostumado a imagens de todos os tipos, sejam imagens sublimes ou cruéis; público que não mais se satisfaz com o passivo posto de espectador e necessita de alguma forma da chamada “interação” com a obra apresentada.


É na absorção do que acontecia ao seu redor que o cinema reforçou suas bases e foi capaz de sobreviver às transições enfrentadas pelo público e pelo próprio curso da história. Desde o início, é possível identificar em alguns cineastas a busca por algo que se aloja entre o aparato técnico e o material subjetivo dentro da construção das imagens que, possivelmente, contribuiu para que o cinema contemporâneo faça surgir no espectador uma nova sensação. Essa sensação não está ligada apenas a imagem, não está ligada apenas ao som, mais a uma simbiose perfeita entre esses dois elementos e o rico material exterior que percorre a sociedade, seja de natureza concreta ou subjetiva. E o resultado desse processo é um novo audiovisual dotado de possibilidades a serem desvendados não apenas a partir do aparelho visual, mas de toda a proporção no corpo humano e dentro de seu psicológico.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A Festa da Menina Morta




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Sempre estou disposto a conferir atores trocando seus papéis habituais e encarando a direção de um filme. É interessante a forma como se dá essa inversão de funções e como se constrói esse olhar que por tanto tempo era apenas paisagem. Vez em quando, as surpresas têm um sabor doce, em outros casos, um pouco azedo.


Infelizmente, A Festa da Menina Morta, primeiro filme dirigido pelo excelente ator Mateus Nachtergaele, fica com o segundo time.


Na história, um pequeno povoado da região do rio Amazonas se prepara para a comemoração da tal festa. Há vinte anos, uma menina morreu e nunca foi encontrada. Na época, uma sucessão de fatos levou as pessoas a acreditarem que Santinho (Daniel de Oliveira) pudesse realizar milagres e, a partir de então, além de se comemorar a data de aniversário da morte da menina, as pessoas vão até Santinho em busca de bênçãos, aconselhamentos, milagres. A história do filme é centrada nos dois dias de preparativos, tendo a festa como o clímax.



Como um bom ator, Mateus sabe extrair o que de há melhor em seus protagonistas. Daniel de Oliveira transita perfeitamente entre os extremos pelos quais percorrem as reações de Santinho. Os desconhecidos Juliano Cazarré (Tadeu, irmão da menina morta), Conceição Camarotti (Das Graças) e Ednelsa Sahdo (a Tia) não deixam por menos e compõem perfeitamente papéis de importância que orbitam ao redor da figura de Santinho. Mas se coordenando a função que o consagrou, o diretor exibe toda a experiência que adquiriu ao longo de sua carreira, na direção ele peca numa seqüência de equívocos que, não só prejudicam o ritmo do filme, mas apontam para certas manias de outras produções nacionais.

Se, num primeiro momento, os longos planos-seqüência dão maior destaque a atuação de seus atores, a sucessão eventual por planos-detalhes se evidencia totalmente desnecessária, e logo se percebe certa “lógica de montagem” com plano-seqüência/plano-detalhe/ plano-seqüência, chegando a cansar o espectador, tamanha a repetição. Se a intenção de Mateus era explorar “tempos mortos”, deveria ter investido um pouco mais no estudo de obras de cineastas que utilizaram o recurso a exaustão e com extrema excelência, como o mestre Antonioni. É provável que o problema de ritmo pudesse ser compensado se o roteiro fosse mais bem trabalhado. Se as imagens são construídas a passos de tartaruga (contribuindo para que a bela direção de fotografia de Lula Carvalho seja apreciada, mesma com a predominância de espaços interiores no filme), esse tempo parece não dar conta das informações que o espectador recebe do filme. Além de ter de remontar o quebra-cabeça que é a história da menina morta - que em momento algum é inteiramente esclarecida -, temos a crise de fé pela qual passa Tadeu, o crescente incomodo psicológico que Santinho vem sentindo em relação à lembrança de sua mãe, a relação incestuosa dele com seu pai (vivido por um subaproveitado Jackson Antunes), além da sugestão de histórias paralelas das tias que o diretor insinua, mas nunca leva a adiante. O pior fica para a rápida resolução dos conflitos, beirando a preguiça no caso de Tadeu e ao clichê dramalhão no caso da mãe de Santinho.



A Festa da Menina Morta, em toda a sua crueza de imagens e dureza de seus personagens, lembra o cinema de Cláudio Assis, com quem Mateus trabalhou em Amarelo Manga e Baixio das Bestas. Mas assim como os filmes do pernambucano, carece da falta de alguma coisa. Na esperança de apresentarem o ser - humano em toda a sua natureza imoral e irracional, levado apenas pelos desejos, esses filmes acabam num limbo de pretensão e vazio ideológico e, se por um lado ressaltam a evidente qualidade técnica da atual cinematografia nacional, por outro, simplesmente assumem a outra face da moeda cinema padrão / cinema marginal, reafirmando que o importante é “chocar” e ver como somos todos podres pó dentro. Ou seja, a mesma masturbação mental de sempre.

sábado, 1 de novembro de 2008

O balconista e a geração X



É provável que você já tenha ouvido por aí alguém dizer que hoje em dia a adolescência se estende até os trinta anos (e há quem diga quarenta). Eu mesmo vivo usando isso como desculpa para me redimir de eventuais futuros fracassos. Mas de onde surgiu essa idéia? Bom, eu não sei, mas encontro uma geração que viveu isso de maneira como nenhuma outra: a geração do início dos anos noventa. É ali, na década do pós-tudo (pós-guerra fria, pós-ditadura, pós-glam rock, pós-extravagâncias, pós-beatles, pós etc.), onde se bateu o martelo para o caminho da informatização digital e onde a globalização se estabeleceu de uma vez que os jovens adolescentes dos anos oitenta desembarcavam na idade adulta.

Kevin Smith era um desses jovens representantes da geração X quando, em 1994, lançou o seu O Balconista. O filme produzido com baixíssimo orçamento acabou recebendo prêmios em Sundance e em Cannes. Com isso, Smith deu início a uma série de filmes que contavam com o mesmo universo de personagens e que discutiam sobre os principais assuntos que permeavam a cabeça dessa geração: cultura pop, problemas com empregos, amigos, namoradas, futuro, sexo, quadrinhos, Star Wars (?!)... Nada muito diferente do que a geração atual discute, com uma ou outra alteração (troque Star Wars por algum Senhor dos Anéis ou Harry Potter, um grunge por um emo ou indie da vida e teremos um acordo).


No universo de filmes como Procura-se Amy, Barrados no Shopping ou Dogma, figuras outsiders transitavam dentro do limbo que é, para alguns, a idade dos vinte e poucos aos trinta anos, que refletia talvez a realidade de seus criadores.


Da grande leva de diretores independentes que emergiram nos Estados Unidos na década de noventa – Richard Linklater, Gus Van Sant, Todd Solondz, Jim Jarmusch (este já vinha se firmando desde a década de 80, com Estranhos no Paraíso ou Daubailó), Edward Burns, além do próprio Smith, para citar apenas alguns nomes – surgiram histórias de personagens que, de alguma forma, negavam-se a aceitar suas condições de mudanças e de assumir o controle de suas vidas. Presos a pensamentos de auto-depreciação, baixa auto-estima (vide Felicidade, de Solondz), dificuldades em assumir responsabilidades e deixar o apego às lembranças do passado, dificuldades de relacionamentos, esses personagens vagavam por aí, discutindo sobre assuntos banais, desses que passam por nossa cabeça numa longa viagem de ônibus no dia-a-dia. Utilizavam as formas mais absurdas possíveis para suprirem suas faltas ou saciarem seus desejos reprimidos em meio a uma década de transição, entre o fim e o começo de um novo século. Resumindo, eram personagens absurdamente ordinários e, exatamente por isso, humanos.


Em O Balconista 2 (2005), é curioso observar como Kevin Smith olha para seu universo dez anos depois, como um Deus que enxerga suas crias e como se intromete em seus destinos. Parece bem claro que o diretor percebe que sua geração recebeu uma espécie de prorrogação para sua adolescência, mas que esse tempo enfim passou e chegou a hora das escolhas serem feitas, seja para o bem ou para o mal, assim como seus personagens.


Agora, próximos dos quarenta anos (alguns mais, poucos menos, e outros que já ultrapassaram esta faixa), a geração X parece enfim encontrar um lugar para si, seja de maneira inquieta (Gus Van Sant tem Elefante, Last Days, Paranoid Park), inventiva (como o prolífico Richard Linklater de filmes tão dispares como Antes do Amanhecer, Escola do Rock e Scanner Darkly) e até desencanada, como os projetos recentes de Smith Menina dos Olhos, O Balconista 2 e Zack and Miri Make a Porno.



E ainda que a obra desses cineastas não traga mais a mesma dose de inventividade de tempos atrás, ela carrega um forte sentimento de honestidade daqueles que viveram seus anos como puderam, e aproveitaram o tempo extra que lhes foi concedido, mesmo que fosse para reclamar desse tempo e do fato dele ter que acabar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Batman - O Cavaleiro das Trevas









A uma tragédia anunciada logo na primeira parte de Batman – o Cavaleiro das Trevas e podemos perceber isso nos pequenos detalhes.


Se estamos todos na expectativa de nos encontrarmos com o personagem do Coringa (Heath Ledger), ele surge e desaparece da mesma forma como conduzirá toda a sua trajetória e dos habitantes de Gotham ao seu redor, sem qualquer segurança ou aviso prévio. Há ainda pessoas que se vestem de Batman tentando fazer justiça com suas próprias mãos, fazendo com que Bruce Wayne (Christian Bale) repense o papel que desempenha e revise os objetivos que tinha ao assumir o manto de homem-morcego. Um homem busca a justiça sem se render de maneira alguma ao sistema (Aaron Eckhart como promotor Harvey Dent) e tendo como poucos aliados o tenente Gordon (Gary Oldman) e como inimiga toda a máfia da cidade (e fora dela). É com esses e outros elementos que Christopher Nolan tece uma cadeia de eventos e acontecimentos que, inevitavelmente, nos levarão a fins extremos em ambos os lados, e some-se a isso a trajetória de cada personagem que não poderão mais carregar em si a alcunha de herói ou vilão.


A aula de cinema que é Cavaleiro das Trevas escorre por cada canto de sua produção. Não há desperdício de película nem situações inúteis a compor roteiro. Cada elemento tem seu “porque” de existir. Se a situação pede dramaticidade, ficamos próximos dos personagens, sentimos suas emoções. Se o tom é épico, a trilha pontual reforça os sentimentos, as tomadas aéreas se fazem presentes, a grua percorre seu caminho de cima a baixo. Há ação, romance, humor, terror. Em pouco mais de 140 minutos, Nolan faz de seu filme uma síntese de nossos dias, tão caóticos como o Coringa, pois se nos espantamos com as empreitadas do Palhaço do Crime, também o fazemos no mundo real, onde existem os mesmos massacres, onde existe o mesmo receio em andar pelas ruas e ser atingido por nossos próprios policiais, onde a corrupção disfarça, esconde e confunde bandido e mocinho.


Bruce Wayne, a fim de poder lidar com a infinita dor da perda de seus pais, assumiu a imagem mais assustadora que mantinha em seus pesadelos e fez dela um meio para livrar o mundo da corrupção. A intenção era de que a mesma imagem que pusesse o medo servisse de inspiração para as pessoas. A esperança de que isso se torne realidade surge na imagem do promotor Harvey Dent, que faz com que Bruce chegue aos seus limites, a ponto de suportar ver seu amor (Maggie Gyllenhaal) se distanciando cada vez mais. Mas como já foi dito, O Cavaleiro das Trevas é uma tragédia, e não tardará para que a esperança se transforme em desespero.


E esse desespero tem nome: Coringa. Heath Ledger encarna a versão definitiva do personagem. Não há origem, não há motivos, não há desculpas, o Coringa é o que é. Como uma força incontrolável, sua teia “não planejada” de eventos leva os habitantes de Gotham a seu extremo limite, e mais fundo irão seus “heróis”. Fica a constatação do tipo de ator que Heath Ledger poderia ter sido se não houvesse falecido no começo deste ano. Sua entrega ao personagem (como já havia feito em filmes como O Segredo de Brokeback Moutain e Candy) apenas apontam uma crescente evolução artística e uma capacidade de síntese assustadora. Os olhos de seu Coringa estão sempre abertos, movimentam-se de maneira veloz e precisa afim de não perder um único lance. A língua que molha o redor dos lábios a todo instante, parece nos lembrar quando temos alguma marca ou machucado e ali mexemos todo o tempo. Sua voz nasalada e sinistra nas mesmas proporções. Um andar duro, cômico, e alerta. Nada da fanfarronice histriônica de Jack Nicholson. O Coringa de Ledger está anos-luz a frente do Coringa de Tim Burton.


Christopher Nolan clama a quem quiser ouvir, desde o filme anterior, que seu Batman poderia ser real, isto é, não há nada de gratuito na história do menino que viu os pais sendo mortos e que jurou defender a justiça. Escrevendo o roteiro junto com irmão Jonathan Nolan, a partir de um argumento de David Goyer (roteirista de Batman Begins), Nolan resume uma questão a anos trabalhada de diferentes formas, a de que Batman não é um super-herói. Ele não tem super-poderes, é apenas alguém muito inteligente movido por sentimentos profundos. E se no filme anterior tínhamos um Wayne inexperiente, que falhava a todo instante, no novo filme vemos sua natural evolução (e as cenas em Tóquio são emblemáticas nesse sentido), tanto em seu aparato técnico e necessidades, quanto a sua forma de pensar. Aqui também há os momentos de desespero, e ainda maiores do que no primeiro, mas Bruce não hesita em tomar as difíceis decisões que lhe aparecessem a todo o instante. O domínio de produção que Nolan exibe no filme é impressionante. O diretor tem classe, muita classe. É escola Scorsese e Michael Mann da melhor qualidade. O trabalho com os excelentes atores, as câmeras precisas, a fotografia e, acima de tudo, o roteiro, lançam o diretor definitivamente ao patamar de “grande”, e fazendo de um blockbuster um cinema autoral.


Muito mais poderia ser dito a respeito do filme. Há ali muitos destaques merecidos, como o papel do Tenente Gordon, uma alma pura em meio ao inferno e, a jornada de outro cavaleiro, Harvey Dent, o Cavaleiro Branco de Gotham. Assistir a sua jornada em paralelo a de Batman é tão comovente como a do morcego e, ao final, percebe-se como Harvey acaba sendo o grande alicerce de toda a história, sendo sua presença o motor e vários conflitos ao longo da exibição.



A vontade de continuar a escrever sobre o filme só não é maior do que a de revê-lo. Fica a dica, no, ao que parece, quase impossível caso de alguém ainda não ter visto Batman – O Cavaleiro das Trevas, que vá tranqüilo ao cinema. Sente-se, relaxe e permita ser conduzido sem medo ao universo das sombras de Gotham, que tão bem reflete nossa sociedade. Se isso parece assustador, não se esqueça em momento algum que ainda podem existir cavaleiros que lutem por motivos muito mais nobres que o dinheiro e o poder, heróis anônimos, e esperamos que eles não vivam o suficiente para se tornarem vilões, como diz Harvey Dent, mas que a paz chegue antes e eles possam deixar o anonimato e viver em harmonia com todos os outros.


O Prisioneiro da Grade de Ferro



Confesso que estava com um pouco de receio em escrever um texto sobre o filme O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto Retratos), de 2003, direção de Paulo Sacramento, documentário filmado ao longo de sete meses no ano anterior (2001) a implosão de alguns pavilhões da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.


Falar do Carandiru já seria difícil sem o devido conhecimento quanto aos anos de existência deste hoje mítico local, de tantas histórias e simbolismos para a sociedade paulistana. Eu mesmo, que vivi a vida toda em São Paulo, sei pouco sobre a história do complexo penitenciário.


Diante disso, tentarei registrar apenas algumas impressões e reflexões quanto ao filme, tentando seguir um percurso que não afirme nada que não seja algo que, de fato, esteja ali.


No ano anterior a desativação do complexo penitenciário, a produção do filme ensinou 20 presos a operarem câmeras de vídeo, e durante sete meses foi registrado o cotidiano do Carandiru. O resultado final é uma mescla de imagens feitas por profissionais do cinema e pelos próprios presos.


Imaginar como se davam as relações ou mesmo o dia-a-dia dentro da casa de detenção sem ter realmente estado no local, vivido aquela situação, é algo impossível para aqueles que nunca fizeram parte da população do Carandiru. Dito isso, é assombrosa a forma como somos conduzidos para os corredores, para dentro das celas, pelos pátios e outros ambientes com uma incrível liberdade. Surpreendentemente, os presos abrem suas portas, tanto para seus colegas que seguram as câmeras quanto para o pessoal da produção (inclusive o próprio Sacramento) e não têm medo de mostrar à sujeira, as condições de vida, as drogas (e vemos a produção de maconha, cachaça e mesmo crack já em sua forma de consumo), os ratos – aparentemente, a outra população do local - com uma hospitalidade inacreditável. Não consigo deixar de pensar no glamour simbólico que uma câmera de vídeo pode provocar num público sem acesso devido à educação – e falo aqui da maioria de nossa população. Claro que, mesmo com toda essa liberdade, temos apenas uma representação imagética, jamais tátil.


As duas horas de duração são realizadas a partir de um excelente trabalho de montagem. Sacramento, em seu primeiro longa-metragem, tinha em seu currículo “apenas” a direção dos curtas Ave (1992) e Juvenília (1994), a montagem dos filmes Tônica Dominante (2000), de Lina Chamie, e de Cronicamente Inviável (2000), de Sérgio Bianchi, e a produção e montagem do bem visto longa-metragem de Cláudio Assis Amarelo Manga (2002). A montagem é feita como se dividida em capítulos, sendo alguns pavilhões o tema principal e alguns subtemas surgidos posteriormente, como faxina, dia de visita, o templo religioso, assim como seus personagens – os presos que habitam cada pavilhão. Não existe um modo formal onde se encaixa a “narrativa”, não há um início ou um fim, mas uma minuciosa seleção dentro das mais de 170 horas de registro original dentro do local. Percebe-se que um assunto escolhido poderia ser uma ponte para o próximo material a ser exibido e assim se sucede as escolhas até que se encontre um conjunto suficiente de seqüências que expressem uma mensagem – e não serei eu a afirmar qual de fato seria essa mensagem.



O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto Retratos) é um documento histórico, mas extremamente humano. É impensável reagirmos imparcialmente às cenas e aos comentários dos presos ou dos ex-diretores que aparecem ao final do filme. Sejam pensamentos pró ou contra, a verdade é que somos também tomados por um sentimento que permeia a vida dos moradores da Casa de Detenção de São Paulo: o de conflito. Confrontamos nossos pensamentos contra nossos sentimentos. A razão é a todo instante obrigada a dividir o espaço com a compaixão, e tentamos apenas sobreviver a esse embate. Mas é certo que as marcas deixadas por esse conflito psicológico não são tão intensas quanto aquelas que carregaram todos os que fizeram parte da população do Carandiru.

Em Paris



Paul (Romain Duris) está deprimido. De volta à casa do pai, ele sofre com a fim de seu relacionamento com uma moça. Jonathan (Louis Garrel), seu irmão mais jovem, passa do dia experimentando as “emoções” que lhe cruzam o caminho ao mesmo tempo em que tenta trazer o irmão de volta a vida normal. Em meio a tudo isso o pai dos dois, que nada pode fazer quanto à vida dos filhos.


Basicamente, essa é a trama de Em Paris (Dans Paris), novo filme de Christophe Honoré, que esteve em cartaz há algum tempo nos cinemas.


Disse basicamente, mas poderia dizer que é só isso o que acontece no filme. Nenhuma reflexão profunda, nenhuma moral da história, nenhuma análise a respeito das paixões humanas, nada disso, mesmo que, no início, possamos ser levados a pensar que alguns desses itens venham acontecer.


Na impossibilidade de ser a figura central da história, Jonathan, no início do filme, toma para si o papel de narrador. Sim, ele fala com o público. Um interessante artifício, mas que perde suas possibilidades no decorrer do filme. Somos apresentados a Paul e presenciamos seus últimos momentos com a namorada, aqueles momentos onde o casal parece saber sobre o inevitável, mas luta desesperadamente tentando sustentar as colunas e vigas de um teto que não suportará por muito tempo.


Logo estaremos assistindo a cenas familiares a todos os que já passaram pelo processo da separação, como ficar deitado o dia inteiro com as mesmas roupas, falta de apetite, poucas palavras e, porque não, uma ou outra vontadezinha de acabar logo com tudo. Jonathan tenta alegrar o irmão, fazê-lo sair de casa para que se encontrem em um local referente à sua infância, mas chega a ser engraçado o número de distrações que encontra pelo caminho. Paul faz o típico intelectual rejeitado enquanto Jonathan, muito mais pelo que parece ser uma escolha de vida do que uma característica sua, vive uma autêntica despreocupação. O pai dos dois tenta ora ou outra fazer diferença na vida dos filhos, mas sabe bem que não pode fazer nada a não ser assistir às escolhas que os dois fazem de suas vidas.


O filme de Honoré tem bons momentos. A bela fotografia apenas realça a beleza da Paris de Jonathan (se bem que filmar em Paris já é um baita passo para se fazer um filme esteticamente bonito) e contrasta com a escuridão do apartamento onde Paul passa a maior parte do tempo. Falar das difíceis relações humanas é sempre interessante, o que cria um interesse maior do espectador pelo personagem de Paul (apesar da presença sempre cativante de Jonathan). O bom elenco faz um trabalho coeso.


O “contudo” fica na escolha do como contar tudo isso. Parece que o roteiro quer contar coisas demais para um dia só, o que acaba levando o filme a uma conclusão rápida e forçada. Os irmãos passam a maior parte do filme separados e em dinâmicas de vida opostas, o que faz com que a premissa do filme perca seu sentido em alguns momentos. O mesmo acontece na escolha do que contar. Não foi possível desenvolver em noventa e poucos minutos temas como amor, desilusão, família, redenção (e existem outros filmes que conseguiram cumprir tal tarefa com mérito). Além disso, Honoré, nos momentos em que se utiliza de alguns artifícios, como a conversa de Jonathan com o espectador e seus pontos-de-vista, faz as coisas destoarem e perderem-se em inúteis exercícios estéticos. Fico pensando qual seria o verdadeiro motivo de utilizar o ator Louis Garrel na produção. Visto em filmes recentes como Os Sonhadores e Amantes Constantes, não consegui entender direito a intenção do personagem de Garrel “quebrando” a estrutura da ficção e ainda por cima (e isso é uma interpretação pessoal) dialogando com o próprio cinema - na cena em que aparece na frente de dois cartazes, um de The Last Days, filme de Gus Van Sant com Michael Pitt, com quem Garrel trabalhou em Os Sonhadores e Marcas da Violência, de David Cronenberg, uma das produções que mais se difere da cinegrafia do cineasta e uma das que mais obteve sucesso também. Poderia fazer algum sentido se fosse essa a proposta original do filme, o que não me pareceu ser.


Como estudante, sou totalmente a favor das experimentações dentro da estrutura da narrativa e da linguagem cinematográfica e, apesar de conhecer pouco da obra do diretor, sei que o mesmo tem repertório suficiente para isso, mas acho que algo deu errado no experimento dessa vez. Ele utilizou demais onde, provavelmente, o menos se encaixaria melhor. Suas intenções foram maiores do que seu produto.



O dispensável anticlímax do filme deixa a mesma sensação incômoda do fim de um relacionamento e um dos pensamentos que a isso sucede: o de que as coisas (e nesse caso, o filme) poderiam ter sido diferente. Melhores? ;-)

Factotum




Antes de qualquer coisa, tenho que confessar que meu primeiro contato com Charles Bukowski foi em uma edição passada da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde obtive conhecimento do filme Factotum (que, como não pude assistir na própria Mostra, anotei os dados do filme e fiquei a espera de sua estréia em circuito nacional, como faço com tantos outros que provavelmente nunca entrarão em cartaz). Dito isso, minha análise será puramente sobre o filme, seus aspectos objetivos, não fazendo comparação à obra escrita de Bukowski, a qual ainda não tive acesso, mas que garanto ter entrado na minha lista de autores a conhecer.


Factotum nos apresenta uma parcela da vida de Hank Chinalski (Matt Dillon), visivelmente um alter-ego para o próprio Bukowski. Chinalski é escritor e, quando não está escrevendo, passa seus momentos bebendo, fumando, procurando emprego e sendo despedido. Numa interpretação adiantada, poder-se-ia dizer que Chinalski vive uma vida boêmia, assim como tantos outros escritores e filósofos de perfil parecido. Mas basta assistir ao filme para perceber que não é bem assim.


Chinalski têm objetivos: escrever, beber, observar a vida a sua volta, e, por que não, vivê-la (do seu jeito, claro). Não há em momento algum indício de que ele não goste da vida que leva, mesmo em um dos poucos momentos onde consegue se expressar abertamente deixando clara a sua indiferença quanto a sua condição de vagabundo. Tem consciência até mesmo das poucas relações que cria em sua vida, principalmente com as mulheres. São regadas por algum tipo de interesse mútuo, seja para ganhar dinheiro ou simplesmente sexo. As personagens de Lili Taylor (em boa atuação) e Marisa Tomei (breve participação) são apenas exemplos das diversas relações que o protagonista teve ao longo de sua vida.


Chinalski parece há muito ter percebido esse lado cruel da vida humana e simplesmente abdicou de tudo em favor de seu próprio estilo de vida. Difícil seria afirmar que alguém que escreve tenha desistido de tentar viver, muito pelo contrário, o fato dele continuar escrevendo é porque acredita que existem coisas a serem ditas, ou que, no mínimo, ele ainda tenha o que dizer.


Matt Dillon que há muito vinha seguindo o caminho dos ex-galãs em decadência, faz a mesma coisa que muitos de seus colegas vêm fazendo: arriscando-se no cinema independente, e acaba acertando em cheio. Compõe um Chinalski bêbado, barrigudo, sujo, de imagem repugnante para os amantes da boa etiqueta, porém, acima de tudo, charmoso e sedutor na medida certa, seduzindo-nos a entrar em seu mundo e vermos a vida pelo seu próprio ponto-de-vista. Dillon, que concorreu a uma estatueta por outro filme independente, Crash – No Limite, nos devolve a esperança para uma carreira que parecia fadada as vídeo locadoras.


Enfim, em Factotum a vida nos parece mais suja do que o de costume, as pessoas nos parecem mais desprezíveis e ignorantes do que o de costume. As pessoas retratadas no filme fazem parte da maior parcela do povo americano, bastante diferente da classe média que reina nas produções em geral. Pessoas desiludidas tentando sobreviver seja com o salário do fim de mês, que unicamente suplanta suas necessidades básicas ou arriscando-se em jogos de azar ou em alguma relação prazerosa ou vantajosa.



Diante de uma realidade tão fria, uma das sensações ao se assistir ao filme e para aqueles que simpatizaram com seu protagonista é a de que há momentos onde se torna tentador a idéia de seguir a “religião” de Chinalski e dar uma grande risada da vida que corre logo ali, do outro lado da janela.

* Apenas por curiosidade, Factotum no dicionário significa algo como “pessoa que faz o serviço de outra”, “pessoa indispensável”, “pessoal que tudo sabe fazer ou resolver”. Para os que assistiram ao filme, lembrar das constantes mudanças de emprego do protagonista é quase automático.






** Mais de um ano e meio depois de ter escrito esse texto, fiz minha lição de casa e enfim entrei em contato com a obra de Bukowski (logo após passar uma época sonhando com meus dias caso eu tivesse feito parte da geração beat). Parei na metade do livro que lia e pretendo retornar a ele assim que possível (apareceram-me outras obras e me perdi entre a leitura de "umas e outras").