segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Cinema histórico em tempo real


Numa época de convergência de mídias em meios digitais, uma época pós-vanguardas, pós-moderna, digital, saturada de imagens e de extrema velocidade, como permanece o cinema como um dos alicerces da cultura da sociedade, e mais, como produzir imagens numa época onde já se viu de tudo e onde o espectador não mais pode ser um mero receptor de determinada informação? Qual é o audiovisual produzido no cinema do final do século XX e nesse início de século XXI?


A década de 90 chegou em meio a uma nova ordem, não só no que diz respeito a questões políticas, mas também a um novo cenário social e tecnológico. Após períodos conturbados, de disputas e conflitos, o homem do final do século finalmente gozava de certa liberdade de direção. Toda a tecnologia inventada, explorada e utilizada nas décadas anteriores agora caminhava por um percurso diferente, não tão centrado e de forma muito mais abrangente. Percurso este com uma nova característica que se mostrou essencial ao desenvolvimento dessa tecnologia: a convergência. Os meios de comunicação passaram a manter um contato mais freqüente entre si, trocando experiências e percebendo que muitas vezes o desenvolvimento de suas linguagens – e cada meio possui a sua linguagem específica – ocorria de forma paralela. E o cinema foi dentre esses meios o que mais transitou por outras formas de linguagens e, conseqüentemente, absorveu e as converteu para o seu próprio fim. E por mais estranha que possa parecer essa característica de absorção – isso se pensarmos na linguagem cinematográfica como uma das mais enraizadas dentro das linguagens de mídia comunicacional -, é ela também quem reafirma o poder do cinema em transformar o seu redor em matéria-prima essencial para seu desenvolvimento.


Ao longo do século XX, a importância e a utilização da imagem atingiram proporções nunca antes experimentadas. A imagem, que já ganhara um novo sentido e abrira novos horizontes com a fotografia, ganhava o mundo através do cinema, sendo utilizada tanto em fins meramente comerciais, como para propagar ideologias (vide filmes como O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, O Encouraçado Potemkin, de Eisnstein ou Intolerância, de D. W. Griffith) e mesmo ditar a moda e os costumes de seu tempo. A televisão consolidou o fascínio do público pelo material audiovisual e, se num primeiro momento, procurava simular no lar a experiência do cinema, não tardou a encontrar seu espaço próprio, a ponto de fazer a produção cinematográfica repensar seu papel na indústria de entretenimento e seus fins. Se o cinema trouxe a projeção como uma das partes principais de seu aparato técnico, foi a transmissão na maquinaria televisual (a televisão e posteriormente o vídeo) que trouxeram novos aspectos a imagem, agora ao alcance de todos e em tempo real (Phillipe Dubois).


E é neste último ponto (o tempo real), que se estruturou o desenvolvimento dos meios e da cultura contemporânea. Pensar em tempo real nos remete à velocidade com a qual é transmitida determinada informação de sua fonte emissora até o seu receptor. Quando, num primeiro momento, a barreira da velocidade foi aparentemente quebrada pela emissão em cadeia global pela televisão e, posteriormente, pela conectividade da internet, a percepção do usuário começou a sofrer alterações. O advento de novos meios de comunicação assim como um freqüente uso da imagem (diretamente ligado a lógica capitalista e conseqüentemente, ao consumo de produtos e afins), provocaram no espectador uma vontade cada vez mais crescente de ingerir novas sensações. Paralelo a isso, o cinema foi sofrendo dentro de seu universo algumas divisões que iam desde interesses pessoais a curiosidade de se experimentar novas técnicas de linguagem.


A favor da já citada propagação da imagem por todos os cantos, um tipo de cinema se estabeleceu como modelo tanto para fins comerciais quanto forma de expressar a vontade das massas: o cinema de Hollywood. Cinema construído a base de estrelas (sejam atores, diretores, produtores, roteiristas, etc.), de grandes orçamentos, de grandes estúdios, de grandes bilheterias, de premiações, o cinema de Hollywood perpetuou o modo de vida norte-americano e veio de encontro à nova realidade do mundo pós-guerra, com seu país saindo como grande vencedor e modelo de prosperidade. E ainda que houvesse uma grande produção independente, voltada a fins mais próximos a verdadeira realidade do povo ou de maior alcance artístico (e havia mesmo algumas produções de grande porte também com esses fins), a grande indústria do cinema aos poucos popularizou um formato de fazer cinema que, em detrimento a qualidade (roteiro), abusava de elementos como a estética e a popularização de suas estrelas. Ao mesmo tempo em que o cinema de Hollywood construía suas bases (que vinha desde o cinema mudo, passando pela guerra e pelo pós-guerra, chegando aos chamados blockbusters na década de 70), em outras partes do mundo, mais especificamente na Europa, o cinema era experimentado de outras formas. Além da já oposição cultural do velho continente em relação à América, outro olhar predominava e se refletia diretamente na produção audiovisual. Na Rússia, Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, foram pioneiros em repensar a construção da imagem em suas formas de montagem (e Einsestein levou a gramática cinematográfica proposta por Griffith a um novo patamar, com sua montagem intelectual). Os alemães não fizeram diferente com seu expressionismo, revelando as angústias do povo na construção de uma estética extremamente particular e que viria a influenciar em algum grau todas as gerações posteriores, sem se restringir apenas a Alemanha. Mas é no período pós-guerra e em suas décadas posteriores que essa produção cinematográfica atingiu graus nunca antes alcançados. Partindo, antes de qualquer coisa, de um retorno ao interior do homem, livre de qualquer intromissão externa provocada pela nova ordem social, política e econômica e pela lógica consumista e generalizante que ganhava cada vez mais força por todo o mundo (e essa busca por uma espécie de “pureza” foi presença constante no pensamento das vanguardas artísticas européias desde o início), novos “cinemas” foram emergindo por todos os lados, a começar pelo neo-realismo italiano. A saída do cineasta dos grandes estúdios, indo buscar seu material diretamente nas ruas das cidades devastadas (e aqui encontramos uma referência aos filmes de Vertov, ou mesmo podemos voltar ainda mais no tempo, até os filmes dos irmãos Lumière) trouxe uma nova dimensão à construção da imagem. Além disso, os teóricos e críticos de cinema resolveram fazer eles próprios seus filmes a fim de trabalhar a linguagem que por tanto tempo apenas “assistiram”. Desse tipo de movimento – influenciado pelo neo-realismo e por alguns filmes da era clássica de Hollywoood – nasceu a Novelle Vague francesa. Alan Resnais, Claude Chabrol, Eric Rohmer, François Truffaut, Jean-Luc Godard (especialmente Godard), entre outros, criaram uma nova forma de se fazer cinema. Um cinema a baixo custo, sem estrelas, autoral, de imagens com sentido e motivo de estar ali, com um trabalho sonoro específico e trabalhado (ou mesmo sem qualquer som), cinema de crítica e muitas vezes de homenagem ao próprio cinema. E sendo inspiração para outros cinemas, como o Cinema Novo, no Brasil. As conseqüências desse movimento podem ser encontradas já na década de 70, quando Jean-Luc Godard deu inicio a diversos experimentos com a imagem enquanto fazia parte do grupo Dziga Vertov (e posteriormente também).


Nesse momento, a sociedade passava por um conturbado período. A Guerra Fria e a corrida armamentista desenvolviam cada vez mais a tecnologia, que era repassada para os setores de consumo e transformada em eletrodomésticos. Desse momento advém o computador,construindo bases que permanecem até seu formato atual. As ditaduras espalhadas pelo mundo e alguns conflitos sem motivos reais ou específicos (como a guerra do Vietnã) geraram um novo censo crítico na população que, ainda que continuasse a consumir os produtos e absorver um sem fim de imagens publicitárias, começa a questionar sua postura de completa passividade. Pensando no que ocorreu com o cinema dos Estados Unidos, grande catalisador da cultura consumista, é nessa época que surgem cineastas que, assim como os franceses na Novelle Vague ou italianos neo-realistas, vão buscar um cinema mais autoral, um cinema de rua, de pessoas comuns, de marginalizados, de crítica. Surge Martin Scorcese, Francis Ford Copolla, Brian de Palma, John Cassavetes e Stanley Kubrick (que já ganharam seu espaço desde a década de 60) que, ainda que viessem a fazer parte dessa mesma indústria – e não é essa a grande iniciativa do sistema, absorver tudo o que o envolve? – criaram obras que eram verdadeiros estudos da sociedade americana. E o mesmo pode ser observado em outros locais do mundo. A Alemanha viu renascer seu cinema com cineastas como Win Wenders, Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog. Na Itália, já desde os anos cinqüenta e sessenta, Frederico Fellini e Michelangelo Antonioni eram os dois grandes exemplos do cinema pós-neo-realismo. Ingmar Bergman e seu cinema existencialista vinham da Suécia. Isso sem contar toda a história da cultura audiovisual do oriente, de nomes como Ozu e Kurosawa.


Mas a partir de meados da década de oitenta, a imagem audiovisual se transforma mais uma vez. É com o vídeo e seu fácil acesso aos seus realizadores, além de, num primeiro momento, ser a ponte entre cinema e televisão, podendo ser parte de ambos, que um novo tipo de experimentação começa a se dar no campo do audiovisual. Artistas, cineastas, videomakers, reformulam o papel do audiovisual eliminando a necessidade de um único meio específico de projeção e transmissão (vide as instalações), além de um novo mergulho à construção do conjunto de imagens e sons que não mais seguissem uma ordem linear, podendo ou não fazer algum sentido ao espectador - e nesse processo nasce a linguagem do videoclipe, preparando-nos definitivamente para a era digital e toda a velocidade dos meios de comunicação.


O cinema chega aos anos 2000 com uma infinidade de referências, tecnológicas e culturais que foram surgindo ao longo de quase um século. Não é de se espantar que esse cinema esteja agora diante de um novo público, acostumado a imagens de todos os tipos, sejam imagens sublimes ou cruéis; público que não mais se satisfaz com o passivo posto de espectador e necessita de alguma forma da chamada “interação” com a obra apresentada.


É na absorção do que acontecia ao seu redor que o cinema reforçou suas bases e foi capaz de sobreviver às transições enfrentadas pelo público e pelo próprio curso da história. Desde o início, é possível identificar em alguns cineastas a busca por algo que se aloja entre o aparato técnico e o material subjetivo dentro da construção das imagens que, possivelmente, contribuiu para que o cinema contemporâneo faça surgir no espectador uma nova sensação. Essa sensação não está ligada apenas a imagem, não está ligada apenas ao som, mais a uma simbiose perfeita entre esses dois elementos e o rico material exterior que percorre a sociedade, seja de natureza concreta ou subjetiva. E o resultado desse processo é um novo audiovisual dotado de possibilidades a serem desvendados não apenas a partir do aparelho visual, mas de toda a proporção no corpo humano e dentro de seu psicológico.

2 comentários:

  1. ufa! li tudo! rsrs
    paulo, eu tenho algumas considerações: a primeira é q, apesar de toda essa convergencia de linguagens do cinema com outras midias, a cinematografia não perdeu sua caracteristica essencial (e mais paradigmática) q é a utilização da película como suporte (digo o cinemão clássico mesmo, porque experimentações houve)... sendo assim, a gente percebe que esta interação com novas tecnologias não atingiram o cinema no seu cerne (e a gente lembra que o cinema, como pretensão de 7ª arte, carrega um certo purismo em relação à utilização do suporte). no entanto, agora com o suporte digital, isso realmente muda radicalmente e essa contaminação se torna mais evidente, já que o digital está abarcando tudo... ufa! rs
    outra coisa eh q acho q não só o cinema tem/teve essa característica de incluir novas linguagens (liguagens de outros meios), mas esse é um fenômeno da "midiasfera" em si, onde todas as mídias (não gosto deste termo) estão em constante interação... por fim, há quem pense que o homem é um ser inatamente audiovisual, não sei dizer se sim, mas que a cultura ocidental se criou a partir de uma grande dependência do sentido da visão (ampliada com o som) isso parece inegável...
    abraços

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  2. Gostei da crítica Miltão. Pelo visto, é impossível não deixar que os reflexos dos estudos da sua iniciação científica se mostrem de vez em quando. E isso é muito bom.

    Escrevi esse texto ainda no início da formulação do meu próprio projeto mais como um exercício pessoal para ver como andavam e para que direções apontavam alguns pensamentos. Muita coisa já mudou nos últimos meses, mas há alguns aspectos que persistem, principalmente quanto ao desenvolvimento cronológico do cinema.

    Decidi postá-lo aqui como um fluxo de pensamento mesmo.

    Continue a deixar suas opiniões amigo.

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